Certa vez um jornalista perguntou ao Grande Mestre Internacional[1] Savielly Tartakower quem era o melhor enxadrista de todos os tempos e recebeu a seguinte resposta: se o xadrez é uma ciência o melhor é Capablanca; se o xadrez é uma arte o melhor é Alekhine; se o xadrez é um esporte o melhor é Lasker[2]. Teceremos a seguir alguns comentários relacionando o xadrez com estas três áreas do conhecimento.
1 CIÊNCIA
Uma definição possível de ciência é: “conjunto organizado de conhecimentos relativos a um determinado objeto, especialmente os obtidos mediante a observação, a experiência dos fatos e um método próprio”. (FERREIRA, 1986 p. 404). Vamos agora examinar o xadrez tendo por base essa definição de ciência.
1.1 Conjunto Organizado de Conhecimentos
Durante os mil quinhentos anos que o xadrez é praticado, incontáveis partidas já foram jogadas, gerando um conhecimento especializado sobre o jogo. Através de um sistema de registro próprio, este corpo de conhecimento foi organizado e sistematizado de forma a facilitar seu estudo e transmissão.
Isso gerou a produção de uma grande quantidade de livros de xadrez escritos no mundo[3], sendo uma das áreas do conhecimento que mais se escreveu. Assim o conhecimento do xadrez está organizado e acessível ao estudo em áreas como: Abertura, Meio-Jogo, Final, Tática e Estratégia.
1.2 Obtidos mediante Observação e Experiência dos Fatos
À medida que o xadrez foi ganhando maturidade percebeu-se que a explicação para a vitória ou fracasso em uma partida deveria ser procurada não na idiossincrasia do jogador, mas nas características objetivas da partida. Então os fatos que explicam porque um jogador perde ou ganha uma partida devem ser obtidos mediante intensa observação, pautados sempre na experiência.
Quando se irá enfrentar um jogador em uma competição, é comum pesquisar suas partidas buscando identificar suas virtudes e fraquezas.
1.3 Método Próprio
Os dados gerados pelas partidas foram então ordenados e classificados surgindo assim a Teoria dos Finais, a Teoria do Meio-Jogo e a Teoria das Aberturas, cada qual com suas idéias e conceitos mais amplos, mas também dotadas de sutilezas e peculiaridades. Esse conjunto de “ferramentas conceituais” que se usa tanto para jogar quanto para investigar o xadrez configuram o seu método próprio, ou dito de outro modo, a Teoria do Xadrez.
É importante ressaltar que na busca por encontrar o melhor lance, a base lógica e conceitual do xadrez proporciona ao enxadrista um exercício contínuo de observação, reflexão, análise e síntese, passos utilizados pela metodologia do trabalho científico.
O enxadrista deve visualizar as principais posições que derivarão de cada movimento seu, e refletir se a posição resultante é vantajosa para ele ou para o adversário. Como cada plano deve ser feito sem que se toque nas peças, a abstração resultante dessa atividade leva o praticante a adquirir o hábito de organizar seu pensamento.
2 ESPORTE
As definições, tanto de esporte como de jogo, são bastante imprecisas. Tomemos a seguinte definição de esporte: “conjunto de exercícios físicos praticados com método, individualmente ou por equipes”. (FERREIRA, 1986, p. 708). Tomando esta definição por base, esportes como Tiro com Arco ou Tiro Esportivo não poderiam ser considerados esportes, pois quase não existe exercício físico, e, no entanto, não somente são esportes como são também esportes olímpicos.
Vejamos uma definição de jogo:
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana. (HUIZINGA, 1996, p. 33).
Observe que tanto o xadrez como em qualquer outra competição esportiva pode enquadrar-se dentro desta definição, se modificarmos o ponto que diz regras livremente consentidas, para regras oficiais da modalidade. E isso é bastante natural, pois os esportes são, na sua essência, jogos.
Então através de seu status, grau de complexidade interna, grau de organização no mundo e poder de lobby, uma atividade será ou não considerada esporte pelo COB e IOC.
O xadrez é um esporte vinculado ao COB, mas não faz parte dos Jogos Olímpicos, participando somente como demonstração. Em 1999 o IOC concedeu, através de seu então presidente Juan Antonio Samaranch, reconhecimento ao xadrez.
3 ARTE
Uma das muitas definições possíveis diz que arte é “a capacidade que tem o homem de pôr em prática uma idéia, valendo-se da faculdade de dominar a matéria”. (FERREIRA, 1986, p. 176).
As pessoas que relacionam o xadrez somente com lógica estranham ao ouvir que também pode ser uma forma de arte.
O aspecto lógico do xadrez não impede o expert de manifestar sua criatividade, sua individualidade, de imprimir sua marca na partida. Quem joga xadrez provavelmente já experimentou a indescritível sensação de arrebatamento estético ao realizar uma combinação[4], satisfação esta similar à sentida ante uma obra mestra da pintura, música ou poesia.
Fato curioso de perceber é que tanto no xadrez como na música e na matemática serem observadas crianças prodígios. Se compararmos estas três áreas do conhecimento com a pintura, a escultura e literatura, observaremos que nas últimas, a pequena experiência de vida não é suficiente para uma criança compor algo com valor estético.
Em contrapartida, no xadrez, na música e na matemática esta experiência de vida não é fundamental. Segundo LASKER (1962, p. 153), Mozart compôs e escreveu um minueto antes de completar quatro anos de idade. Gauss, aos três anos de idade, sem saber ler e escrever corrigiu uma comprida soma que seu pai fez. Reshevsky jogou dez partidas simultâneas de xadrez aos seis anos de idade.
Artistas contemporâneos normalmente mostram pouco interesse pelas atividades que exigem o pensamento lógico em demasia. Não negam a sua importância, mas não gostam que a lógica amarre o seu estilo. Mas muitos artistas do passado, ao contrário, utilizavam a linguagem matemática para compor suas obras.
Assim no jogo de xadrez, na abertura (fase inicial) e no meio-jogo (fase intermediária), em contrapartida com o final, que possui muita lógica, somente a análise lógica não basta, devido ao elevado número de possibilidades a serem examinadas.
Então o enxadrista, diante da incapacidade do cálculo exato, orienta-se por princípios gerais. Ao pautar-se por esses princípios o jogador de xadrez reduz as opções drasticamente a poucas a serem consideradas. Ocorre que mesmo com essa seleção prévia, ele precisa usar sua imaginação, sua intuição por assim dizer, para encontrar o melhor lance.
Como certa vez o físico John R. Bowman disse: “a impossibilidade de conhecer o melhor lance é que eleva o xadrez de um jogo científico para uma arte, um meio de expressão individual”.
[1] Grande Mestre é um título concebido a um jogador de xadrez considerado por sua força pertencendo ao mais alto nível da cúpula enxadrística.
[2] Emmanuel Lasker (1868 - 1941) foi campeão mundial de 1894 a 1921, José Raúl Capablanca (1888 - 1942) de 1921 a 1927 e Alexander Alekhine (1892 - 1946) de 1927 a 1935, e de 1937 a 1946 conservando o título até sua morte.
[3] As três maiores coleções em bibliotecas são: J. G. White Collection na Cleveland Public Library com 39.075 volumes; van der Linde-Niemeijer Collection na Royal Library com 40.000 de xadrez e damas; e Anderson Chess Collection na the State Library of Vitória com 12.000 volumes.
[4] Combinação é uma seqüência de lances que um jogador desenvolve para conseguir algum tipo de vantagem.